sexta-feira, 16 de maio de 2014

“Recordar é viver” (memórias da mãe)




O meu liceu foi feito lá nas vinhas a apanhar vides, a enxofrar, a mondar ervas do trigo, e em casa a lavar roupa à mão, de joelhos. Foi sempre assim, até amassei e cozi pão no forno de lenha quando tinha por aí uns catorze anos. Não era nada fácil: com a morte da minha mãe quando eu tinha oito anos, comecei a fazer quase tudo o que faz uma mulher no trabalho de casa, desde criança.

1933, Ericeira. Deolinda: primeira da direita.

Ainda a minha mãe era viva, tinha eu por aí uns seis ou sete anos, no casal dos pais da minha mãe à beira do rio, onde havia três azenhas e um lagar onde se moía a azeitona. Naquele tempo vendia-se a farinha já peneirada para os padeiros, então a minha avó punha-me a peneirar.
Como eu não podia com a peneira cheia de farinha, então ela colocava um alguidar muito grande encostado mesmo à mó, ou seja, ao monte da farinha que caía da mó. Nesse alguidar colocava duas tábuas muito lisinhas onde eu podia deslisar a peneira.
Depois colocava-me um lenço na cabeça, um avental dela à minha cintura que dava duas voltas no meu corpo, ia buscar uma tripeça onde eu me sentava e com um prato eu tirava a farinha do monte para a peneira.
Peneirava sacas de farinha, saía de lá parecia uma moleira, até as pestanas me pesavam com farinha. Depois varria a azenha bem varridinha. O meu avô dizia ninguém varre a azenha tão bem como tu.


Depois que a minha mãe faleceu, aí poucas vezes ia ao casal mas me deixava muita saudade. Eu e minha irmã Herculana brincavamos muito na beira do rio, apanhavamos rãzinhas para dentro de um frasco, depois iamos apanhar bolotas dos carvalheiros que caíam no chão.
A ribeira da Vila Nova, onde eu nasci, era linda mas medonha, porque não tinha eletricidade de noite. Metia medo a escuridão naquele meio de tantas árvores. O rio, de inverno fazia barulho, e em várias ocasiões com cheias que levavam até pedregulhos.
Depois o cantar das corujas… enfim, era medonho, mas os meus avós já estavam habituados. Quem conhece o casal não pode duvidar disto que eu escrevo, que eu também passei, visto que nasci no ano 1926.
Era isolado de tudo; sem telefone, ali não havia nada a não ser farinha, hortaliças, feijões, azeite e pão bom. Comi muita açorda com alho, acho que é por isso que ainda hoje gosto de açorda: é rara a semana que não coma uma vez.
A ribeira, como já disse, era linda, porque tinha árvores de várias espécies: muitas figueiras, à beira-rio choupos, carvalheiros, loureiros, cerejeiras e arbustos que davam um fruto que depois de maduros eram muito encarnadinhos, que nós chamávamos de medronhos, e ainda muitas flores que a minha avó plantava – roseiras e outras espécies.
Também tinha uma ponte com uma parreira por cima, uma ideia que meu avô inventou para não deixar passar os carros de bois com enormes carradas de trigo para debulhar dos vizinhos, alguns vindos do lado que dava para a Vila Nova. Havia um caminho mas eles preferiam passar pelo casal porque era mais perto da estrada que passa ao cimo da ribeira, mas meu avô não estava de acordo visto que aquele caminho era particular, foi ele que o construiu, a meu ver ele tinha razão.
Hoje está tudo destruído: o casario das azenhas, o lagar de moer azeitona, tudo. Apenas está de pé a casa de habitação, em que hoje habita lá uma prima, filha do meu tio Luís.
Tudo isto é a pura verdade. Se eu escrevesse tudo quanto se passou lá no casal no tempo em que eu era criança decerto nem acreditavam.

(croquis desenhado por meu pai)

Passou-se lá um caso que à primeira ninguém acredita: foi que um touro bravo tenha subido num telhado de uma azenha e caído lá dentro. Mas eu explico como aconteceu.
Primeiro tenho de explicar como era a casa da azenha. Foi construída numa inclinação do terreno. Na frente tinha um pátio onde os burros se prendiam com uns talegos.
Naquele tempo os touros que vinham do Ribatejo para o matadouro da Malveira não vinham de camião, mas a pé com umas guias e dois campinos à frente e outros atrás.
Ao passar pelo cimo da ribeira, onde havia uma estrada que passava pela Tesoureira, um dos touros se tresmalhou e meteu pelo vale abaixo, passando por trás da casa de habitação e depois a azenha, que era um pouco mais abaixo, visto que o caminho era de burros, era estreito, e quando passou pela azenha, como o telhado da parte de trás era quase rente ao chão – como já disse que estava feita na inclinação do terreno, não é mais nada: o touro subiu ao telhado, caindo numa armadilha sem o ser, ficando por cima da mó, visto que era uma divisão muito pequena. Tão pequena que o touro quase não cabia lá dentro.
E depois, o problema para tirar de lá o touro! A aflição dos meus tios que eram jovens – o mais novo tinha aí uns dezanove anos, o outro teria aí uns vinte e dois ou vinte e três (eu tinha sete anos quando isso se passou). Naquela aflição, dois jovens sem experiência alguma, qual foi a ideia de um: “- Vou ao lagar buscar uma corda, atamo-la nos cornos do touro e puxamos por ele!”. Como se isso fosse possível, nunca o conseguiriam e se o fizessem o touro matava-os! Eles chegavam ao touro por cima da terra, visto que ele estava por cima da mó, mas tudo se resolveu num instante.
O touro deu uma cabeçada na porta da azenha e partiu tudo e se escapou pelo vale do rio abaixo, com a corda e tudo, nunca mais ninguém o viu, foi uma sorte!
Um caso destes até parece que foi passado na pré-história, quando os primitivos faziam armadilhas para caçar os mamutes… “E esta, hein?” – como dizia o Pessa, duvido que tenha havido outra igual.

Ao centro, com o pai à direita.
Este mês é o fim de Dezembro do ano findo, traz-me muitas recordações, umas más outras boas. Foi no último dia do ano de 1934 que faleceu o meu avô Frade, o Tio António Frade, como era conhecido nas redondezas, um grande lavrador daquele tempo, do concelho de Arruda dos Vinhos. E como o conseguiu: começando por ir buscar peixe a Peniche, atrás de um burro. Quem conhecer a distância que vai de A-dos-Arcos a Peniche que faça uma ideia. Para lá ia a cavalo do burro, para cá a pé, porque o burro trazia duas caixas de sardinhas. Vejam bem uma coisa destas: ele e a Tia Maria da Quinta criaram nove filhos…
Depois, mais tarde, já com muitas terras de semeadura e com muito gado, boas ovelhas, começou a ir ao Alentejo de vez em quando. Naquele tempo ir ao Alentejo era como ir ao estrangeiro: levava uma semana. Um dia, numa viagem dessas, correu um boato que o Tio António Frade tinha morrido no Alentejo. Correu toda a vizinhança lá para casa da Tia Maria, todo mundo chorava. Não é que um vizinho foi a Bucelas e entrou numa taberna e lá estava o Tio António Frade a beber uma pinga, ora, não é mais nada… “ – Ó homem vá já para casa, a sua família está toda a chorar por vomessê!” Desta vez foi mentira.
Mais uns anos, tinha a neta, filha do filho mais velho já falecido, dezoito anos, foi o casamento dela na Vila de Arruda dos Vinhos, na volta, quando passavam por uma curva memo junto à Mata da Arruda, o automóvel em que viajava foi de encontro a um muro, raspando-lhe um braço. Disso faleceu dois dias depois, tinha sessenta e nove anos. O funeral foi no primeiro dia de 1935. Era muito respeitado na região. Eu tinha oito anos, esta é uma lembrança triste.
Há um caso passado com ele no Alentejo, que acho engraçado: um belo dia, quando ele negociava com uns alentejanos que o quiseram enganar, ele apercebeu-se. Vejam qual foi a resposta dele para uns alentejanos: “- Os senhores julgam que por eu ter fato de lã sou filho de alguma ovelha?”. Que Deus o tenha em bom descanso, Paz à sua Alma.



Passa-se a semana, o mês, o ano, a vida, sem darmos por isso, mas olhando para trás vejo que 1926 já está muito distante, mas há coisas na vida que nunca esquecem, que ficam gravadas para sempre.
Eu tenho uma coisa que se passou que nem que vivesse cem anos nunca me esqueceria. Ia pelos meus quinze ou dezasseis anos, as raparigas usavam umas combinações pretas e eu também gostava de ter uma. Em casa se aperceberam disso mas aquela que meu pai deu ordem que se chamasse de madrinha - e essa ordem foi sempre cumprida por mim e pela minha irmã Herculana– então ela me disse se queres uma combinação preta deita peruzinhos, depois crias os peruzinhos, vendes os peruzinhos, e compras a combinação.
Deitar peruzinhos, para quem não sabe o que isso é, é o mesmo que deitar os ovos de perua debaixo de uma mesma perua ou galinha para os chocar. Vejam quanto tempo eu precisava para ter a combinação. Dessa maneira não a tive, que a minha avó que era muito minha amiga deu-me um dinheirinho e eu comprei um bocadinho de pano preto, uma rendinha, uma fitinha para as alças e eu mesma fiz a combinação. Que não era de náilon mas fazia o mesmo efeito, para usar por baixo de uma blusa de chita servia.
Era os anos 42, havia a guerra, havia tecidos tabelados, comprava-se os alimentos com senhas, umas gramas por pessoa, não havia sabão para lavar a roupa nem combustível para os carros. Eram poucos e não podiam andar. O doutor Carinhas, que era um médico que vinha de Arruda dos Vinhos tratar dos doentes, vinha numa bicicleta a motor - que ele só utilizava nas subidas, dizia ele. Foram uns anos horríveis, chegávamos a alumiar-nos com candeias de azeite. Vejam só que desperdício, queimar o azeitinho que nos fazia tanta falta.



 (...)

Aqui em casa só tenho uma coisa boa: é ter o meu quarto, onde me sinto à vontade. Costuro, leio, escrevo, choro quando tenho vontade de o fazer, ninguém me incomoda.

Deito-me cedo, é só despachar-me da cozinha, preciso de me deitar. Motivo: a perna direita incha muito. Depois, de noite, não tenho sono, vou à cozinha, aqueço um copo de leite, tomo com uma bolachinha e depois fico sentada algum tempo, ou leio, ou faço croché.

Faço sempre qualquer coisa, por vezes chego a estar duas horas; como é bom estarmos no silêncio da noite, pensando em tanta coisa…Por vezes ainda fico mais triste: deito-me e primeiro que adormeça é um caso sério.


Com a filha Leonor

Há tempo que venho pensando o que vai acontecendo: o nome de Frade está a diminuir na nossa família. Motivo: nasceram mais mulheres do que homens. Por exemplo: do meu pai, nasceram oito netas e cinco netos. Das mulheres termina o Frade como nome principal; dos homens só três porque dois já não o tem como principal pois tem o dos pais. O que acho uma pena e uma injustiça.

Vejam só: é a mãe que o cria nas suas entranhas, com o seu sangue lhe dá a vida, que sofre, que o amamenta, que trata dele quando está doente, em suma, é sempre a mãe. Depois, o que acontece? É passada para trás e é o nome do pai como o principal!

Se deitarem uma semente à terra e ela não tenha meios para a criar, o que acontece? Não há seara, tudo se perdeu! Vejamos outro exemplo: os vinhos não recebem os nomes dos lavradores que os criam e sim os das Regiões. Coisas que a meu ver estão erradas. Os filhos deviam receber como nome principal o da mãe e não o do pai. Esse ficava no lugar que está o da mãe.

Mas isto é no ver de uma ignorante, não tem importância alguma, mas como em altura de eleições aconselham a irmos votar, não interessa se somos ignorantes ou inteligentes, tudo serve, o que é preciso é o voto.
Não sou política, não percebo nem quero perceber, mas há coisas que metem confusão. Uma pessoa que procure um emprego, aí com uns quarenta dizem que já é velho, não serve. Então como é que uma pessoa com oitenta e um anos serve para ocupar o lugar de Presidente da República, que precisa representar o País? Acho mesmo que já perdeu o prazo de validade, como um iogurte que se deita fora. Não dá para perceber, numa cabeça de ignorante.

Com filha e marido

10 de Janeiro, uma hora, não tenho sono, são tantas as coisas na minha cabeça…
Como é triste ser velha, as pessoas nem ligam ao que dizemos. Eu falo pouco, quase nem saio à rua, a não ser ao mercado uma vez por semana.
Ser velha. Ainda fazem alguma coisa como, por exemplo, ficar com os netos – quem os tem –, ir ao jardim com eles…
Os velhos, esses, se ocupam só a jogar às cartas… É uma tristeza àqueles que ainda tem jeito para fazer alguma coisa, mas outros, nem para fazer um chá…

Às vezes penso que será de mim quando não puder mais fazer as minhas coisas, não quero nem pensar! Tenho pena de não ter uma neta já mulher que me ouvisse…
Passo horas sem ter com quem dizer algumas palavras. Por vezes invento, falo mesmo sozinha… Chamem-me maluca, que não me ralo com isso!... É melhor falar só do que com certas pessoas…

Como eu erro, não sei como colocar os esses, nuns lados escrevo dois, noutros um, tudo trocado, assim como os “us”. Não sei e agora já é tarde para aprender…
A árvore é fraca mas deu bom fruto e isso me anima. Me alegra ver os meus filhos queridos, para mim os melhores do mundo.




18 de Dezembro. Hoje estou muito preocupada, sem saber o que fazer. Precisava de ter com quem falar algumas coisas, mas com quem? Os filhos já têm com que se preocupar e também não ia adiantar nada…
Não sei porquê estou triste da vida que levo, sem achar eco em ninguém. Para passar o tempo faço coisas a que ninguém liga. Mas eu compreendo, não me incomodo com isso, gosto de as fazer e isso me basta. Não sabem dar valor ao trabalho que eu faço, talvez acham que nem valesse a pena fazê-lo.

Mas como na minha juventude não passei o tempo a estudar - porque isso era um luxo, mas acho injusto que com a idade que tenho e que nunca fui preguiçosa, sempre trabalhei e que agora nem tenho com quem falar.
Engulo em seco só para mim como isto que estou aqui a escrever. É só para o papel, que não me dá resposta, nem eu estou à espera dela, é apenas um desabafo.

(...)

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